Sensações

O toque da pele na pele sempre gera sensações. Ondas de calor, expectativa de gozo, desejo… Libido alvoroçada. Explosão. Mas tudo precisa ser muito discreto. Pessoas, mesmo com toda a idade da terra, continuam sendo só pessoas. Mesmo um leve toque pode soar agressivo no universo tosco dominado por seres obtusos, desacostumados a viver suas próprias emoções e enquadrados no padrão de comportamento estabelecido por imposições retrógradas que se acumulavam com o decorrer dos anos. Há quem creia num Deus assexuado que vigia de perto cada uma de suas criaturas com o objetivo de proibir, a todas elas, os prazeres mais elementares. Um Deus tolo, que pune os instintos e incita as guerras. Um ser feito de sangue, lágrimas, angústias e frustrações.
Da janela de casa Fábio pensava nisso, pouco antes de sair, e fixava o olhar na rua, nas luzes que começavam a estourar por cima da cidade e nos espaços que lhe escapavam… Escuros, baldios, quase inexpugnáveis. Espaços aparentemente criados para pessoas especiais. Para aqueles que conseguem ver na ausência da luz, na mais completa escuridão. A memória da boca ainda guardava o sabor do êxtase anterior e as pernas já estavam pelas calçadas procurando mais. Seguiam firmes, passo a passo, enquanto o nariz buscava os cheiros da noite e das pessoas, homens e mulheres temporariamente livres, à disposição. Gente boa e saborosa ondulando corpos, aproveitando o espaço raro entre uma luz e outra, entre uma sombra e outra, sempre exposta a um turbilhão de delírios. Na esquina da Lavradio os olhos lânguidos de Vânia, que já acorrentavam Mônica a uma certa distância, se misturam, cruzaram com os dele, se entrelaçaram, quase gozaram assim. Beijos lúbricos, abraços encaixados saudaram os desejos, roçaram as carnes e seguiram juntos por entre as luzes e sombras. Agarrados, os três, vagueando. Bocas, corpos, peitos, nádegas, salivas, sexos. Todos apalpando aquele começo de madrugada. Afagos e mais, muito mais, na porta do Odisseia. Olívia, Lana, Rodrigo e Zé. Sacros delírios amotinados em frente ao templo irradiando ao infinito sofreguidão e umidade. Tudo de uma vez, juntos. Um, depois três, mais quatro, os sete na cara de Homero, a partir do asfalto e das calçadas da Mem de Sá. Ulisses vários e muitas Penélopes enfrentando mares bravios em busca de amor e gozo. Sereias e monstros marinhos, ciclopes canibais, de tons e texturas às vezes distintas e às vezes assemelhadas, essencialmente misturados. E o canto dos olhos de alguns poucos infelizes procurando sentidos impossíveis de existir no universo incalculável. Cerveja. O sabor amargo brindado como homenagem muda às estrelas. Boca, língua, garganta, estômago e cérebro. Consciência de mente expandida. Enorme. Fantástica. E vodka, refresco de vodka, cigarros e luzes. Muito mais luzes nos olhos, na noite, nos braços, nos ventres, nos rostos. O toque por cima do toque. O gesto, o paladar. E as sombras fugindo das luzes mansas, breves e devoradoras. As luzes comendo sombras, sorvendo, fecundando, aliciando, tudo em meio à escuridão. Já mais tarde, muito mais, a devassidão das cores explodia no caleidoscópio de corpos unos, adentrados, melados, do avesso. Uma quase sombra ainda resistia aos raios das primeiras horas e o gozo – o mais pleno dos gozos – já descansava sua imensidão alojado confortavelmente em todos os orifícios de cada um dos corpos largados pelo quarto. Sete pequenas mortes e sete ressurreições. Sete sorrisos serenos se engalfinhando e dormindo. Sete brilhos radiantes. Sete alucinações.
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 Vânia era a alucinação. Subindo pelas paredes prazeres ternos e doídos. Noite afoita servindo e servindo-se de tudo. Linda, lúdica, aberta, escancarada aos olhos, bocas, dedos, línguas e ações. Brincadeira de invadir, tocar, sorver, experimentar e seduzir. Explorar. Escarrapachada, corpo todo espalhado pelo chão do quarto exalando cheiro de flor, de fenda, de gruta, de florescência molhada por um orvalho próprio, íntimo e absoluto. Um tipo de aroma que invade a narina e inebria, condenando à vida. Vânia assim, dormida, e as mãos amigas ainda pregadas no corpo. Mão de Mônica no dorso, outras escondidas, de Lana e Zé, cobertas pelas virilhas e todas as outras tocando, marcando, tentando durante o sono agarrar sensações.
E Vânia assim, estendida, mexendo, revirando, arrastando o corpo adormecido, suavemente, e se expondo ao sonho. As curvas realçando, bunda nua, peito nu, sexo liso, depilado, banindo a angústia para plagas distantes. E aquele cheiro forte, denso, palpável, visível, saboroso. Do amor misturado, repetido, deleitado. Capaz de apagar todas as dores do mundo, da noite, de Vânia. E a dor advinha do tapa, do aperto, dos dentes cravados nos seios, nos lábios e lábios da rosa. Das rédeas cabelo, do dorso cangalha, da boca de dedos, botões, cogumelos e belos segredos gritados, berrados, gemidos. Além do sussurro, dos gritos, das juras ali murmuradas. Dos apelos e do brinde meloso na boca ou por dentro do corpo, na flor, no botão ou por fora, no ventre. Do hálito quente, da voz perfumada. Do fel. Do prazer. Ela extasiada.
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Zé com a mão comprimida no corpo da moça, dormindo, os dedos roçando de leve na rosa. Na noite viajou, foi dono de todo o folguedo. Dançou, gargalhou, beijou todas as bocas e ali, travesseiro de bunda bonita, ele só dormitava. E pensava na festa. E buscava com o dedo, instintivo, entre as bandas, a fresta, o sagrado orifício, o sabor dos prazeres de todos na ponta do dedo enquanto acordava. Na noite se deu e tomou para si o que o corpo queria. E foi homem, foi macho, foi vício, foi fêmea, menino, menina e foi tudo, sorveu em detalhes os sumos, os sabores do mundo. Bebeu os amores dos outros em cada tulipa após os desejos e deu seu amor. Deixou transbordar sua essência em bocas e seios, em flores, botões, em peitos, em cálices soberbos, serviu-a em taças, em copos, colheres e beijos, de todas as formas. E Vânia se abria, agora, dormindo, e o dedo encaixava. Na bela manhã e nos braços de um raio de sol que vazava, o Zé em carícias pensou que era a noite que tinha voltado. Ou nem acabado.

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E Lana quase dormia… De bruços. O quê? Quem? Quando? Onde? Por quê? Tudo rodopiava solto no cérebro durante a madorna. A angústia, a matéria, o tema, a foto da capa, o suor escorrendo ao redor do pescoço, o corpo postado de quatro, a bruta e perfeita invasão. Aturdida, cobriu durante o último sono a madrugada toda, em detalhes, com a intenção de olhos e instintos atentos, lembrou e esqueceu coisas, se deliciou e pediu perdão. E se perdoou. Mais que perdoou, amou. Voou pela noite, vagou entre as camas e as rodas, comeu as maçãs e fumou os charutos; bebeu no gargalo, chorou de emoção e fartura. Cantou, recitou poesia, malhou o sistema e as formas, as linhas, fontes, conteúdos. Amou quase tudo e expôs, ofertou, concedeu o objeto do amor. Lana se fez e desfez várias vezes. Beijou todas as bocas, variou a paixão do instante em toques. Sussurrou pelo gozo, gemeu pela tese e rugiu pelo mundo. Outorgou ao prazer uma causa e dedicou seu êxtase à humanidade. Homens, mulheres, crianças, velhos. Gordos e magros. Negros, brancos e asiáticos, jorrou por amor ao planeta. Filosoficamente, poeticamente, hedonisticamente.

Rodrigo dormiu e acordou soldado. Recebeu a alvorada postado e exultante. Usufruiu de tudo e de todas, não se dando a ninguém. Comeu, bebeu, sorveu, e provou cada anca exposta ao sabor do delírio. As moças, as bocas, as tetas, as nádegas, tudo por amor à Pátria e à noite. Por amor ao cheiro e ao sabor. Por amor à farra.  Acariciou, apalpou, apertou, beijou e lambeu toda tez feminina que esteve ao alcance das mãos e da língua. Despertou lúcido, pronto para uma nova refrega. Na boca o gosto da boca de Lana, dos peitos de Vânia, da flor de Olívia e o sumo espalhado no rosto, travando nos olhos, impregnando o nariz e se espalhando pelo céu da boca. E as cores, e os sons, e os sopros da guerra, de cada batalha, voando vaidosos diante dos olhos, à flor da memória.

A luz da manhã não poupou a ressaca de Mônica. Preguiçosa, despertou num gemido com a mão despejada nas costas de Vânia. Sentindo, tocando, acariciando, recolhendo a memória da noite com ponta dos dedos na pele da amiga. Pensava no quanto a amante se deu e recebeu amores e no quanto ofereceu a ela, Mônica, prazeres tão inexplicáveis. Lágrimas e carinhos gerados por paixão avulsa, sem lastro, sem âncora, sem concepção. Um tipo de paixão que não se abandona e nem se permite que viva sujeita aos horrores de um cárcere. Mônica experimentou o ápice do desejo, uma fruta úmida e madura que sacia sede e fome numa mesma mordida. Ajeitou-se para abraçar o corpo nu da amiga e permaneceu ali, calada, quase adormecida, suavemente saciada e feliz pelo instante, pela descoberta, pela sagração da vida e pelo festival de possibilidades estampadas no horizonte. Fez questão de nem abrir os olhos e atravessou a manhã curtindo variadas sensações.
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Olívia trazia nos olhos a marca de Vênus. Tarô, influência de Aquário com alma de Peixes e números fosforescentes fervilhando nos olhos. Gurus, sacerdotes, templários, druidas, gnomos e seres alados como referência de vida. Gozo, como obsessão. Na noite cumpriu rituais de luxúria. Sagrados, ocultos, divinos, prazer dedicado aos seres supremos. Jorrou pelas pernas os sumos dos deuses e amou quantas vezes lhe foi permitido. Rompeu as fronteiras da carne e foi longe, buscou toda forma de luz no escuro dos corpos, em cada espaço, em cada abertura, em cada sentido, em cada instrumento ao alcance da mão. A sacerdotisa extraindo os fluidos de seus seguidores. Sorvendo, pulsando, fazendo o sangue correr pelas veias de moços e damas. Sorrindo e se dando. Servindo e comendo manjares e polpas, serena e alucinadamente. Sagrada e profana, menina e senhora, torpor e razão. Sete destinos cruzados na noite, rodopiando misturados, agarrados à conivência de um quarto, agasalhados pela escuridão e iluminados pelas luzes raras que acalantam a madrugada.

Sete gnomos, sete soldados, sete druidas e sete fadas. Sete pastores e sete iminentes pensadores. Sete elementos percorrendo a estrada. Mapeando as sensações da vida. Construindo templos em terras arrasadas.

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